Decisão do STF vai se basear no resultado da perícia dos militares. Piauí judicializou a questão para tentar recuperar territórios. Caso a decisão seja a favor do Piauí, o Ceará não perderá nenhum município.
Entendendo a disputa por terras entre o Piauí e o Ceará
Os militares do Serviço Geográfico do Exército Brasileiro, por meio do 2º Centro de Geoinformação (2º CGEO), iniciaram nessa segunda (28) atividades de campo a respeito do litígio de terras entre o Piauí e o Ceará. Em decisão do último dia 25, a ministra do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, deferiu solicitação do Piauí para que técnicos do Grupo de Trabalho (GT) instituído pelo governador Rafael Fonteles (PT) para acompanhamento do processo.
Conforme a decisão, o acompanhamento técnico foi solicitado após comunicado do Exército, em 8 de agosto, de que apenas técnicos devidamente nomeados poderiam acompanhar os trabalhos dos militares.
Em decreto do último dia 23, o Governo determinou a criação do GT para acompanhamento da Ação Cível Ordinária (ACO) ajuizada pelo Piauí em 2021. Conforme o decreto, “o GT será subdivido nos seguintes subgrupos: análise jurídica da demanda; estudo do perfil socioeconômico, histórico e demográfico; e análise técnico-cartográfica da área”.
O litígio
O litígio iniciou em 1758 e permanece até hoje. Os dois estados disputam uma área de terras que fica na Serra da Ibiapaba e envolve 13 municípios cearenses e oito piauienses.
Caso a decisão seja a favor do Piauí, o Ceará não perderá nenhum município. Ao todo, são 3 mil quilômetros quadrados de terras, a maioria da Zona Rural dos municípios, e cerca de 25 mil pessoas envolvidas.
Ação no STF
Para buscar um fim à disputa secular, o Piauí judicializou a questão ainda em 2011. O Supremo Tribunal Federal determinou então que o Exército realizasse a perícia na região. A perícia ainda não foi concluída e a previsão é de que se encerre em 2024.
O caso está tramitando no Supremo Tribunal Federal (STF), sob relatoria da ministra Cármen Lúcia, que solicitou ao Exército uma perícia na região para decidir a quem pertencem as terras. A ação foi ajuizada pelo governo do Piauí e já custou R$ 6,910 milhões aos cofres piauienses.
A questão divide os moradores da região, que tem grande potencial econômico, especialmente na área do agronegócio. Parte da população de algumas das cidades é contrária a essa mudança de naturalidade, outra, é a favor.
Piauí nunca “trocou” terras com o Ceará
O assunto foi tema da dissertação de mestrado, pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), do geógrafo Eric de Melo. Ele hoje integra o grupo de trabalho que acompanha a perícia. Após extensa pesquisa, Eric é taxativo: o Piauí sempre teve direito ao território e o Ceará permanece avançando sobre terras piauienses.
Ele diz que muitos mitos precisam ser desfeitos: o primeiro de que o Piauí nunca teve litoral e que o Ceará teria cedido o território ao estado. O segundo de que o trecho da Serra da Ibiapaba teria sido cedido ao Ceará nesta troca.
Ceará apresenta “argumentos legais e culturais”
A deputada estadual cearense Augusta Brito, presidente do Comitê de Estudos de Limites e Divisas Territoriais do Ceará (Celditec), afirma que o estado possui, sim, argumentos legais e culturais para embasar a defesa que o território deve continuar pertencente ao Ceará.
“Nós temos um decreto de 1880, que é o que respalda a nossa defesa juridicamente, como também vários outros documentos que foram conseguidos através das audiências públicas realizadas, na região da Ibiapaba principalmente; em Tianguá, pegando documentos com a diocese; com historiadores. A gente também foi ajudando a incrementar os documentos históricos para a defesa do Ceará”, disse a chefe do Celditec.
Mais detalhes sobre o litígio
- Municípios envolvidos
- Mitos entre os estados
- O Piauí sempre teve litoral
- Regras para divisão territorial
- Disputa judicial
- O que dizem os governos
- Potencialidades e atrativos da região
- O que pode acontecer?
Municípios envolvidos
Entendendo a disputa por terras entre o Piauí e o Ceará. Litígio está no STF — Foto: g1
Os municípios cearenses envolvidos na disputa, que podem perder parte do seu território, são: Granja, Viçosa do Ceará, Tianguá, Ubajara, Ibiapina, São Benedito, Carnaubal, Guaraciaba do Norte, Croatá, Ipueiras, Poranga, Ipaporanga e Crateús.
No Piauí, alguns municípios podem ter seus territórios aumentados, sendo eles: Luís Correia, Cocal, Cocal dos Alves, São João da Fronteira, Pedro II, Buriti dos Montes, Piracuruca, São Miguel do Tapuio.
‘O Piauí sempre teve litoral’
“Antigamente, se dizia que o litígio havia surgido de uma ‘troca’ entre Piauí e Ceará, que dera o litoral do Piauí. Na verdade, o Ceará invadiu o litoral do Piauí e, em 1880, Dom Pedro II assina um decreto obrigando a devolução desse litoral”, explica o pesquisador Eric de Melo.
Mapas mostram que o Piauí já tinha território definido desde 1760, com o Mapa de Galucio — Foto: Mapa da Capitania do Piauí (1760), produzido pelo engenheiro militar Henriques Antonio Galúcio (NOGUEIRA, 2002)/Eric Melo
Ele completa: “Paralelo a isso, em decorrência das secas de 1840 e 1877, o Ceará recebia atenção especial do Império, que, aproveitando o decreto, decide passar para o Ceará terras do leste do Piauí, que compreendem as nascentes do rio Poti. Não foi uma troca”.
Os documentos citados mostram que o Piauí já tinha território definido desde 1760, com o Mapa de Galucio (acima). O primeiro mapa do Ceará é apenas de 1800 (abaixo).
Mapa do Ceará foi definido anos depois do mapa do Piauí e não incluía litoral piauiense — Foto: Eric de Melo/Mapa Geographicó da Capitania do Seará de 1800 de Mariano Gregório do Amaral
Regras para divisão territorial
De acordo com Melo, outro ponto importante é a regra para divisão territorial, que quando acontece por uma parte do relevo da região, considera o chamado divortium aquarum, o divisor de águas.
Assim, como a região fica em uma Serra, o ponto mais alto é o divisor natural. De um lado, o território é piauiense. Do outro, cearense. É a partir disso que o pesquisador afirma que o estado vizinho avançou esse ponto. Há regiões de cidades cearenses bem a oeste da Serra.
Disputa judicial
O procurador do Estado Luiz Filipe Ribeiro, que integra a Procuradoria do Patrimônio Imobiliário e Meio Ambiente da PGE-PI, explicou que, em 1920, durante a Conferência de Limites Interestaduais, foi assinado um acordo (Convênio Arbitral) entre os Estados do Piauí e do Ceará.
Este acordo foi firmado com o Presidente Epitácio Pessoa e nele ficou estabelecido que engenheiros de confiança do governo da República fariam um levantamento topográfico do trecho da causa. A ação nunca foi realizada e nos anos 2000 houve tentativas de acordo entre os estados que também não tiveram sucesso.
“Restando infrutíferas as tentativas de acordo, o Governador do Estado do Piauí autorizou, por escrito, que se buscasse o Poder Judiciário para solucionar esse litígio”.
Diante de toda a situação, em 2011 o governo piauiense, na época sob comando do governador Wilson Martins, buscou a Suprema Corte para decidir a questão. Segundo a Constituição, este é o órgão o responsável por solucionar casos de litígio no país.
Após alegações dos dois estados, o STF determinou a realização de uma perícia na região, para definir de quem são as terras. No momento, o Exército Brasileiro realiza a perícia, que tem previsão de conclusão para 2024.
A deputada cearense Augusta Brito comentou sobre a perícia. “O Exército fez um levantamento prévio, sem ir a campo, pegando mapas e fazendo uma leitura fria e cartográfica. Por essa perícia, o Ceará estaria realmente perdendo vários municípios para o Piauí; não só a ação que o Piauí deu entrada, que era um pedido bem menor, mas com essa avaliação do Exército, poderia ser ainda maior a possibilidade”.
Agora, em 28 de agosto, o Exército iniciou o trabalho de campo. Somente após a análise, o STF poderá decidir sobre o caso.
“Após a conclusão da perícia feita pelo exército, o STF deve oportunizar prazo para as partes se manifestarem. Em seguida, o processo deve ser incluído em pauta para julgamento pelo STF”, informou o procurador do Piauí, Luiz Filipe Ribeiro.
Potencialidades e atrativos da região
A área dispõe de características bastante atrativas para os setores econômicos de forma geral, em especial agropecuários. Além disso, o potencial hídrico é um dos grandes destaques. Nessas áreas, são encontradas 4 sub-bacias hidrográficas, sendo a maioria dos seus rios afluentes da bacia hidrográfica do Parnaíba.
Granja, Ceará — Foto: Mateus Ferreira
“Como prova disso, estão as criações do gado, caprinos, ovinos, suínos, galinhas, abelhas, equinos e diversas espécies de peixe, além das plantações e da atividade extrativista vegetal, que nos municípios que possuem seus territórios nas áreas de litígio, representam mais de 1.000.000 de hectares, distribuídos por quase 60.000 estabelecimentos”, informa a pesquisa de Eric.
Contudo, ele avalia que um dos entraves para maior desenvolvimento da região é a indefinição acerca da jurisdição.
“O desenvolvimento social e econômico de quem vive em meio ao litígio entre os estados é precário, uma vez que empreendimentos públicos e privados, assim como infraestrutura e serviços básicos não chegam a esses lugares devido à indefinição sobre a qual território pertencem essa área”, diz.
Segundo a deputada cearense, o Ceará pretende ouvir a população da região sobre o litígio. “Nós estamos fazendo algumas audiências públicas para coletar algumas assinaturas para abaixo-assinado mostrando o sentimento de pertencimento das pessoas que estão diretamente ligadas a esse litígio, que estão dentro dessa briga, e poderão perder alguma coisa ou não”, destaca.
O que pode acontecer?
Bom, mas afinal, o que pode acontecer dependendo dos resultados? Se o Ceará continuar com as terras, nada vai mudar.
Caso os territórios retornem ao Piauí, a principal mudança é que muitos territórios cearenses se tornarão piauienses. Assim como 25 mil pessoas do estado vizinho “mudarão” de endereço.
É importante destacar que os municípios não serão integrados ao Piauí em sua totalidade, mas apenas parte de seus territórios.
“O que pode ocorrer: áreas que hoje estão ocupadas pelo Ceará passarão oficialmente para a jurisdição do Piauí. Os núcleos urbanos que são registrados como do Ceará até 1880, mesmo estão sobre os planaltos da Ibiapaba, permanecerão como do Ceará. Agora o que foi instalado após 1880 ficará com o Piauí”, explicou Eric.