A tentativa de resgatar privilégios no Congresso reacende o temor de um passado marcado pela blindagem de criminosos de terno e gravata
O Brasil já experimentou, com amargura, os efeitos nefastos da impunidade institucionalizada. A década de 1990 foi um período particularmente sombrio para o Parlamento nacional: um tempo em que a imunidade parlamentar ultrapassava o limite da proteção política e transformava-se em escudo para delitos hediondos. Parlamentares envolvidos em crimes gravíssimos de corrupção sistêmica ao assassinato escoravam-se na exigência constitucional de autorização do Congresso para serem processados, travando a Justiça e corroendo a confiança da sociedade nas instituições democráticas.
Dois casos emblemáticos ainda ecoam como feridas abertas na memória nacional. O do ex-deputado federal Hildebrando Pascoal, do Acre, conhecido como o “deputado da motosserra”, acusado de liderar um grupo de extermínio e de crimes que chocaram o país pela brutalidade. E o do ex-senador Ronaldo Cunha Lima, que em 1993 atirou a queima-roupa no então governador Tarcísio Burity, em um restaurante lotado na Paraíba, e continuou exercendo mandato por anos sem qualquer punição penal efetiva. Ambos são símbolos do quanto o foro privilegiado e a dependência da autorização legislativa para processar parlamentares serviram, por muito tempo, como ferramenta de impunidade.
A pressão da sociedade civil e da opinião pública, revoltadas com tantos absurdos, levou o Congresso Nacional a aprovar, em 2001, a Emenda Constitucional nº 35. Essa medida histórica eliminou a exigência de autorização prévia do Legislativo para o andamento de ações penais contra seus membros. Foi uma conquista do Estado Democrático de Direito e um avanço civilizatório na separação entre os poderes.
Entretanto, a tentativa de reviver esse modelo de blindagem retorna agora pelas mãos da chamada PEC 3/2021, conhecida como PEC da Blindagem ou PEC das Prerrogativas. A proposta prevê que a abertura de processos contra parlamentares volte a depender da autorização da respectiva Casa Legislativa, mediante votação secreta. Uma clara ameaça ao princípio da igualdade perante a lei pilar fundamental de qualquer república democrática.
A aprovação dessa proposta representaria um grave retrocesso. Enviaria à sociedade um recado devastador: o de que, enquanto o cidadão comum responde por seus atos com celeridade, membros do Legislativo podem estar acima da Justiça, protegidos por um corporativismo anacrônico. A democracia não sobrevive à sombra de privilégios. Quando a lei não é para todos, o Estado de Direito se transforma em um artifício retórico.
A história recente mostra que, quando protegidos por regras injustas, maus políticos tendem a reincidir, perpetuar esquemas criminosos e alimentar uma cultura institucional de desrespeito à legalidade. A impunidade não apenas acoberta os crimes do presente, como semeia os crimes do futuro.
O Parlamento precisa se lembrar que é casa do povo e não trincheira de proteção para os que traem a confiança popular. O Brasil clama por justiça efetiva, responsabilidade e transparência. Retomar a blindagem parlamentar é caminhar em sentido oposto à ética, à moralidade pública e ao espírito republicano.
A quem interessa silenciar a Justiça?
A resposta está nas entrelinhas de cada voto.
fonte: Jornalista Flávio Amorim

